18/10/2013

Filmes que Marcaram: Vitor Afonso, O Homem que Sabia Demasiado



“Vem e Vê” (1985) – Elem Klimov


Já conhecia a fama do filme de há uns anos a esta parte. Sabia que estava à venda na Midas Filmes há vários anos. Sabia que havia comentários referindo que se tratava de um dos mais impressionantes filmes de guerra jamais realizados. Sabia que a edição do DVD estava esgotada na Fnac há meses. Daí que tenha recorrido ao óbvio: encomendar directamente da distribuidora portuguesa. Vi-o há dias e garanto: é dos filmes mais espantosos que alguma vez na vida. Chama-se "Vem e Vê" (título retirado do livro do Apocalipse) e foi realizado pelo russo Elem Klimov em 1985. Klimov nunca mais voltou a realizar depois desta obra. Porquê? Simplesmente porque, segundo o próprio, tudo o que tinha a dizer disse-o neste brutal documento sobre a segunda guerra mundial. E assim é.


A história é a de um adolescente (um rapaz de 16 anos) que testemunha os horrores Nazis cometidos em aldeias da Bielorússia (dizimaram 600 aldeias!). Uma descida total, frenética e sem concessões aos abismos da mais pura loucura que nem o Coronel Kurtz em "Apocalypse Now" terá experienciado. Uma descida aos infernos de pura alucinação e horror psicológico derivados da violência e do desespero presenciado pelo ingénuo rapaz. E não se trata de mera ficção, uma vez que "Vem e Vê" parte de um episódio verídico ocorrido durante a segunda Guerra Mundial. Foram usados uniformes verdadeiros e munição real, para acentuar o realismo do filme, e quase toda a película foi filmada com recurso a "Steadycam" (incrível trabalho de câmara), fazendo parecer que a câmara se cola permanentemente à acção e aos personagens. O protagonista Florya (interpretado por um espantoso actor de nome Alexei Kravchenko) tenta fugir dos horrores sem deles conseguir escapar. Kravchenko tem, aqui, uma das mais incríveis interpretações do cinema levadas a cabo por um adolescente. O terror está estampado no rosto como que se fosse esculpido de angústia e perplexidade. Passou por verdadeiras privações durante a rodagem do filme, de tal forma que o realizador Klimov quis hipnotizá-lo, nas cenas mais violentas, para não as não presenciar! O jovem actor recusou.
Há outros elementos fulcrais no filme que o tornam único. A primeira metade do filme lembra"A Infância de Ivan" (1962) de Tarkovski, sobretudo nas sequências na floresta, plenas de lirismo visual filmadas em plano-sequência com uma brilhante fotografia. A segunda metade do filme, quando a violência desponta e o desnorte se apodera do jovem, entramos num patamar de demência raramente vista em filmes de guerra. A música original é densa e claustrofóbica e o trabalho de sonoplastia é de puro mestre (como quando o Florya fica surdo devido a uma explosão: 


o som que ouvimos é um som cavo e filtrado, tal e qual o que o protagonista sentia).
E depois, depois há o final. Um final absolutamente surpreendente e apocalíptico, que não deixa margens para dúvidas: Elem Klimov fez um filme para denunciar a tragédia do Holocausto e revelar ao mundo a pura e dura natureza malévola do homem. Esse final, de alguns minutos sufocantes, é constituído por momentos de grande tensão dramática, com o jovem Florya, possesso de raiva, rosto envelhecido e revoltado perante as atrocidades que não compreendia, dispara contra um quadro de Hilter estendido no meio da lama. Ouve-se o"Requiem" de Mozart (como nunca o ouvimos) e vemos as imagens de arquivo da ascensão do Nazismo fazerem um retrocesso no tempo, ao ritmo dos disparos de Florya (e mais não conto para não servir de "spoiler" para quem não viu o filme). "Vem e Vê" é uma experiência de cinema verdadeiramente arrebatadora e difícil de suplantar.
E será certamente um dos melhores filmes de guerra jamais feitos. Uma obra-prima de rara beleza estética, artística e de inequívoca grandeza documental/histórica.



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